A morte solidária de Jesus
- Werbert Cirilo Gonçalves
- 27 de mar. de 2018
- 5 min de leitura
GONÇALVES, Werbert Cirilo. Movimento Shalom: um jardim sagrado atrás da porta estreita. Belo Horizonte: Crivo Editorial, 2018.
A vida de Jesus é a história de um Deus-apaixonado. Ele é o ser humano voltado para as fragilidades de seu povo, pela causa dos mais necessitados, homem que se comove e luta pela libertação dos oprimidos e dos pecadores e pela cura dos doentes. Por causa da sua paixão pelo reino de Deus, vai ao encontro – como presença provocadora – dos que possuem o poder. Assim, passando por Jericó, Jesus vai com seus discípulos para Jerusalém, o lugar das injustiças de alguns líderes judeus e das violências dos romanos. Nesta cidade, ele celebra a ceia com os seus discípulos, lhes dá o gesto do lava-pés como modelo da pertença e da humildade, além ser condenado a carregar a cruz.
Na cruz, Jesus sabe que o Pai quer que ele seja fiel até o fim. Assim, aceita a injusta morte causada pelo ódio dos homens como a derradeira vontade do Pai. Aos inimigos de Jesus não interessava o seu mero aniquilamento físico. Embora autoridades de Israel e herodianos tivessem feito várias tentativas de tirar-lhe a vida, o que efetivamente desejavam era a extirpação de sua memória. O suplício mais desumano que se conhecia, importado da Pérsia e de Cartago, era a crucificação. Era reservada a desertores, ladrões, revoltosos e escravos. Considerada, por muitos, o mais cruel e horrendo dos suplícios, a crucificação expunha o executado e sua posteridade à infâmia e excreção pública[1].
No madeiro, acontece a solidariedade do Filho de Deus com os sofredores e pecadores. Solidariedade realmente plena e gratuita e não docética (aparente) de Jesus. O Filho de Deus, em atitude de amor inconcebível, se solidariza com todos os pecadores, mas não com o pecado e nem a ação pecaminosa[2].
E, assim, ainda que parecesse estar abandonado, se entregou como oferta total. Como diziam as primeiras comunidades, ele se entregou para que não estivéssemos mais sozinhos, inclusive em nossas dores. Desta forma, mais do que uma simples entrega por nós, é uma entrega na radicalidade: o oferecimento de Jesus está carregado de sentido. “Deus entregou o seu Filho por nós para se tornar o irmão de todos os abandonados e os reconduzir a Deus”. O Cristo sofredor é o nosso irmão que comunga das mesmas dores humanas e que passa pelo sofrimento: que é um enigma para o ser humano que busca sentido para a sua contingência (sofrer, adoecer, morrer).
Assim, entendemos o sentido de sua caminhada até o calvário. A peregrinação de Jesus percorrida livremente foi – como última entrega confiante a Deus e sua vontade salvífica – extrema solidariedade com todos os seres humanos, com as vítimas sofredoras e com os causadores de sofrimento; e assim, consequentemente, também em solidariedade com seus próprios inimigos e os de Deus.
Mas, quem está sendo crucificado hoje? A lista é grande, mas citemos alguns: os jovens das periferias; a pessoa que sobrevive nas ruas; a mulher marginalizada; o viciado; os que sofrem violências psicológicas, moral ou físicas; a pessoa com deficiência; as crianças em situação de risco social; os adolescentes que sofrem bullying; os povos indígenas e quilombolas desrespeitados em sua cultura e patrimônio; os desempregados e os que estão em subempregos; idosos abandonados em asilos ou ruas; os doentes nos corredores de hospitais públicos; as vítimas do preconceito e discriminação; os que padecem abuso e exploração sexual; os que vivem sob condições de trabalho escravo e opressão do trabalho infantil; os refugiados, os traficados, os oprimidos e os mártires; etc.
O homem e a mulher de hoje, diante do seu sofrimento, encontram consolo ao contemplar profundamente o mistério de Cristo apaixonado. Com o Deus que sofre (o Cristo na cruz) se identifica. Esse Deus não é mais aquele que de tão longe lhe parece frio e desvinculado de sua vida sofredora; com o olhar fito no Deus compassivo esse se torna para o homem um Deus vivo, realmente humano e presente na sua história.
Como alguns exegetas dizem: os primeiros seguidores do Cristo, buscando explicações e sentido para a cruz, não foram muito diferentes de nós ao contemplarem os seres humanos crucificados na história: a viúva, o órfão, o pobre e o doente. Entendemos que a morte de Jesus não constitui uma catástrofe. Ela é uma “coerência” com toda a sua vida, com as exigências de sua pregação e seu amor a Maria, aos discípulos, ao cego, a adúltera, a hemorroísa, a Lázaro, à multidão faminta de pão e justiça, a Bartimeu, ao ladrão, a Pedro, etc. Portanto, a cruz de Cristo deve ser entendida como as cruzes que carregamos ao longo da vida. A cada um cabe carregar o madeiro até o fim, o que significa vencê-la. Assim, a nossa salvação está no revelado pela morte de cruz e na vitória sobre ela, pois a ressurreição de Jesus Cristo é a esperança no Senhor de que nossa luta não é vã. Por amor, o Cristo morreu, do mesmo modo ressuscitou para nos mostrar que nem a morte pode vencer o verdadeiro amor.
O homem de hoje deve ser fiel a Deus no sofrimento lutando para se libertar (vencer) da morte. Como discípulo fiel e verdadeiro, o cristão deve tomar a sua cruz de cada dia e levá-la até o fim tendo que morrer fielmente nela para ressuscitar. O cristão que contempla a vida de Cristo na sua totalidade e age inspirado nela pode assim tornar sua vida história de salvação. Em sua vida e sua morte, Jesus é o ser humano verdadeiro e inteiro, sendo, portanto, em seu relacionamento com Deus e os outros, o arquétipo de humanidade por excelência. Ele representa em si todos os demais seres humanos, não como eles sempre são, mas como ainda deverão tornar-se, afinal, todos deverão conformar-se à sua imagem e deverão fazê-lo através da comunhão com ele.
Em suma, que possamos levar ao mundo o amor de Deus pelos pobres, pequenos e excluídos deste mundo. Que os ensinemos que para vencer o sofrimento têm que olhar para o exemplo do Cristo apaixonado que carregou a cruz até o lugar do sacrifício. Somente assim, passando pela morte com confiança em Deus, com perdão e amor no coração se pode ressuscitar. Que não esqueçamos que o sentido da morte do Cristo foi dado numa ceia: numa festa pascal com seus amigos. Com vinho, ele significou o seu sangue derramado e, com o pão, representou o seu corpo ofertado. E, consagrando estes frutos da terra e do trabalho humano, os tornou sacramento eucarístico que nos alimenta e nos sustenta. Que possamos aprender a solenizar a vida com os amigos, porque a morte só faz sentido quando compreendida a partir da vida. E que nunca deixemos de celebrar a Eucaristia: ofertando os desafios, os nossos medos, os sofrimentos e, sobretudo, ofertando os nossos sonhos, conquistas e a nossa história, fazendo assim memória do Cristo que se fez solidário a todos até em sua morte. Deste modo, “quando amanhecer o dia eterno, a plena visão, ressurgiremos por crer na Vida escondida no pão” (Dom Carlos A. Navarro)!
GONÇALVES, Werbert Cirilo. Movimento Shalom: um jardim sagrado atrás da porta estreita. Belo Horizonte: Crivo Editorial, 2018.
[1] Ideia presente em Jürgen Moltmann.
[2] Vale conferir o trabalho do teólogo alemão Jürgen Moltmann sobre o “Deus crucificado”.
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